terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

FORTES INTERESSES AMEAÇAM A AGENDA 21 NA RIO+20

As flores da Agenda 21 encantaram muitos de minha geração,

e mais do que nunca o espírito do documento está ameaçado

Por José Pedro Martins






Um enorme retrocesso no sonho mundial pela sustentabilidade poderá ocorrer na Rio+20, em junho, se sacramentada a morte, desejada por alguns poderosos, da Agenda 21. Iniciativas muito sérias direcionadas para enterrar a Agenda 21 já foram tomadas, e antecedentes históricos apenas alimentam o risco desse desastre para o processo civilizatório.
A Agenda 21 foi o principal documento aprovado na Eco-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em junho de 1992, no mesmo Rio de Janeiro que agora receberá nova importante conferência da ONU. Marcada por um profundo compromisso ético com a vida, em seus 40 capítulos a Agenda 21 detalha os princípios, conceitos e metas para a conquista do desenvolvimento sustentável nas áreas social, econômica e ambiental.
Nem de longe é o horizonte dos sonhos, muitas questões ali apontadas poderiam ser repensadas à luz do atual cenário global e até de inovações tecnológicas ocorridas nas últimas décadas. Mas o principal é o espírito, o olhar, a perspectiva da Agenda 21, no sentido de considerar a complexidade da temática socioambiental. Uma visão multidisciplinar, transversal, complexa dos problemas e da forma de resolvê-los. E é acima de tudo um fomento da esperança, a indicação de que é possível mudar o quadro global à primeira vista devastador e sem solução.
A Agenda 21 motivou processos nacionais, regionais e locais em várias partes do planeta, com resultados expressivos de mobilização e avanços concretos em muitos casos. Entretanto, o sentido da Agenda 21, a sua mensagem, sempre foram boicotados na prática pelos grupos e governos não muito compromissados com as mudanças necessárias e urgentes para a proteção da vida na Terra. “Falar em Agenda 21” dava alergia em muitos poderosos (e mesmo meros candidatos a poderosos), temerosos de assumir compromissos que não poderiam lhe render apoio de outros poderosos.
E agora as garras estão afiadas. Nos Estados Unidos, cresce o movimento anti-Agenda 21, apontada como uma barreira para o crescimento econômico e até como uma forma de censurar as liberdades individuais. Nada mais falso e demagógico. Mas essa articulação ganhou uma dimensão perigosa com a resolução aprovada em janeiro pelo Partido Republicano, condenando o que qualifica de “destrutiva e insidiosa natureza” da Agenda 21. Newt Gingrich, um dos candidatos nas primárias republicanas, já se expressou a respeito, fazendo coro a seus partidários.
Curiosamente essa deliberação do poderoso Partido Republicano não teve grande repercussão na imprensa (o “New York Times” publicou artigo sobre a questão) ou mesmo no segmento ambientalista mundial. Entendo que essa movimentação por lá deveria ser levada mais a sério, inclusive em função da proposta oficial dos Estados Unidos para a Rio+20, que inclui a elaboração de um décalogo dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), semelhantes aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), cujo prazo expira em 2015. Seria um conjunto de metas simplificadas, a exemplo dos Oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, a serem alcançadas em 10 ou 20 anos. Seria, na prática, uma enorme diluição do que a Agenda 21 global representa para um avanço da consciência de cidadania planetária.
O Brasil também manifestou apoio à elaboração dos ODS, em sua proposta oficial à Rio+20. Outros países, contudo, como a Colômbia, fizeram questão de ressaltar a importância de que na Rio+20 a comunidade internacional renove os compromissos com a Agenda 21. A Colômbia também apoia os ODS, mas deixa claro que eles deveriam se inspirar na Agenda 21.
Infelizmente existe uma tradição na história das grandes conferências internacionais de se esquecer o que foi aprovado anteriormente. A primeira Conferência de Meio Ambiente da ONU, a de Estocolmo, em 1972, aprovou uma declaração final com propósitos avançadíssimos, como o fim das armas de destruição em massa e do colonialismo, ao lado da defesa dos direitos humanos, da educação ambiental e da ciência a favor da vida. Claro, muitos desses enunciados não saíram do papel ou foram solenemente desprezados. Tomara que a Rio+20 não passe para a história como o evento que sepultou a Agenda 21.
Documento oficial - O “esboço zero” do documento final da Rio+20 é muito genérico quando aborda a Agenda 21. Isso apenas aumenta as preocupações com relação ao futuro desse documento da Eco-92 que representou muita esperança para toda uma geração. São estas, e apenas estas, as referências à Agenda 21 no esboço, intitulado "O futuro que queremos".
Ponto 7. “Nós reafirmamos nosso compromisso com o prosseguimento da implementação da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Agenda 21, o Programa de Implementação Contínua da Agenda 21, a Declaração de Joanesburgo sobre o Desenvolvimento Sustentável e o Plano de Implementação da Cúpula Global sobre o Desenvolvimento Sustentável, o Programa de Ação de Barbados e a Estratégia Maurícia para Implementação. Os princípios da Eco-92 continuarão a guiar a comunidade internacional e servir como base para a cooperação, coerência e implementação dos compromissos assumidos”.
Ponto 12. “Nós notamos que o compromisso nacional com o desenvolvimento se aprofundou. Muitos Governos atualmente incorporam questões ambientais e sociais em suas políticas econômicas, e fortaleceram seu compromisso com o desenvolvimento sustentável e a implementação de Agenda 21 e de acordos relacionados através de políticas e planos nacionais, legislação e instituições nacionais, e a ratificação e implementação de internacional ambiental acordos”.
Ponto 44. “Nós reconhecemos que uma forte governança em níveis locais, nacionais, regionais e global é crucial para dar prosseguimento ao desenvolvimento sustentável. O fortalecimento e reforma da estrutura institucional deve, entre outras coisas:
a) Integrar os três pilares de desenvolvimento sustentável e promover um implementação de Agenda 21 e resultados relacionados, de modo consistente com os princípios de universalidade, democracia, transparência, custos acessíveis e responsabilidade, mantendo em mente os princípios da Eco-92, em particular as responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
b) Oferecer uma orientação política coesiva e centrada nos governos para o desenvolvimento sustentável e identificar ações específicas de modo a cumprir a agenda de desenvolvimento sustentável através da promoção de uma tomada de decisões integrada em todos os níveis.
c) Monitorar o progresso na implementação da Agenda 21 e resultados e acordos relevantes, em níveis locais, nacionais, regionais e global”.
Ponto 49 (2ª alternativa). “O trabalho do Conselho (de Desenvolvimento Sustentável) deve se basear em documentos fundamentais sobre o desenvolvimento sustentável como a Agenda 21, os princípios da Eco-92 e resultados relacionados. O Conselho deve, entre outras coisas, realizar plenamente as funções e obrigações da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável. Deve ser guiado pela necessidade de promover a integração dos três pilares de desenvolvimento sustentável, promover sua implementação efetiva em todos os níveis e promover coerência institucional efetiva. Deve ajudar a ampliar o envolvimento de todos os stakeholders, em particular Major Groups, no acompanhamento dos resultados da Rio+20”.
Ponto 105. “Nós reconhecemos que metas, objetivos e marcos são essenciais para a medição e aceleração do progresso na direção do desenvolvimento sustentável e concordamos em lançar um processo inclusivo para elaborar até 2015:
a) um conjunto de Metas Globais de Desenvolvimento Sustentável que reflitam um tratamento integrado e balanceado das três dimensões do desenvolvimento sustentável, sejam consistentes com os princípios da Agenda 21, e sejam universais e aplicáveis a todos os países, mas dando espaço para abordagens diferenciadas entre países;”
Ponto 118. “Nós reafirmamos os compromissos relativos a ciência e tecnologia contidos na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, na Agenda 21 e nos resultados de outras importantes Reuniões de Cúpula e Conferências da ONU”.
Tudo muito genérico, muito pró-forma. Não se fala em atualizar a Agenda 21, como um grande roteiro, aí sim, para a conquista do aclamado desenvolvimento sustentável. O Ponto 105 é particularmente preocupante, porque ratifica a proposta dos Estados Unidos, Brasil e outros países, de elaboração das Metas Globais de Desenvolvimento Sustentável. Poderão ser indicadas metas muito limitadas, diluindo a abrangência da Agenda 21. O esboço zero, enfim, foi ainda mais diluidor do potencial da Agenda 21 do que as próprias propostas, em sua maioria timidas, dos governos dos países.
Lobby forte – Os contrários à Agenda 21 poderão ter a aliança, na Rio+20, de outros lobbies igualmente poderosos, como dos defensores da energia nuclear e dos chamados “céticos do aquecimento global”. Depois do acidente de Fukushima, no Japão, no início de 2011, a recusa à energia nuclear aumentou muito em todo planeta. A Rio+20 pode ser a última chance para a indústria nuclear, com o argumento de que essa energia é “limpa” e de que seria uma ótima alternativa para combater o aquecimento global. Nada mais falso, na medida em que, como vários estudos já demonstraram, a indústria nuclear é suja já na extração e processamento de urânio, até a destinação dos resíduos radioativos, para a qual ainda não existe tecnologia adequada.
Por outro lado, o lobby dos “céticos do aquecimento global” demonstrou sua força nos Estados Unidos, particularmente no Congresso, que tem-se recusado a aprovar a proposta, ainda que limitada, do presidente Obama de corte nas emissões americanas de gases-estufa nos próximos anos.
O lobby dos “céticos” (na realidade, dos defensores da continuidade do uso dos combustíveis fósseis) é fortíssimo no Congresso norteamericano. Apenas em 2008, segundo levantamento do The Center for Public Integrity, um conjunto de 770 empresas e grupos de interesse foi responsável pela contratação de 2340 lobistas para atuar nos debates sobre a legislação para as mudanças climáticas. Este número representava que o número de lobistas na questão tinha aumentado em 300% desde 2003. Apenas em 2008 o lobby que critica a tese do aquecimento global por causas humanas gastou US$ 90 milhões, segundo a mesma fonte. Vários bancos de ação global integram o lobby.
Enfim, não faltarão poderosos interesses na Rio+20 para tentar derrubar o “espírito da Agenda 21”, que foi solenemente torpedeada por esses interesses nas últimas duas décadas. Ela nunca foi o melhor dos mundos, não reflete os desejos reais de transformação rumo à sustentabilidade plena, mas é um marco civilizatório e está por um fio.