ARTIGOS



A várzea, fonte e paixão primeira do futebol no Brasil

Capa do livro "Campinas, meu amor", de 2007, de Helton Pimenta e José Pedro S.Martins, a partir das histórias saborosas de Zaiman de Brito Franco, um dos maiores conhecedores da alma, das ruas, do povo de Campinas. O texto abaixo foi extraído do livro, que ainda fala de política, da noite, de gente que fez a beleza de Campinas:



       No Brasil o futebol começou literalmente na várzea. Mais especificamente na várzea do Carmo em São Paulo, onde a 14 de abril de 1895, um domingo, Charles Müller promoveu, entre as ruas do Gasômetro e Santo Rosa, o primeiro jogo de futebol devidamente documentado no Brasil. E foi a partir dos solos porosos e poeirentos da várzea que o futebol entrou na pele do brasileiro. Para Zaiman, a alma do futebol está na várzea. Desde menino, conheceu a fundo a várzea campineira, os vários campinhos que fizeram a festa do povo, de onde saíram vários craques. A geografia do futebol, escrita na várzea que desapareceu, ao ritmo do avanço do concreto e asfalto, mas que permanece tatuada no coração de quem viveu essa delícia.

Gazeta Esportiva, de jornal a time de meninos

     Gazeta Esportiva, nome de jornal importantíssimo na história do futebol brasileiro, time amador com história tão quanto na várzea de Campinas. O Zaiman foi um dos fundadores, junto com José Perez Pombal. O time nasceu no Colégio Campineiro, do professor Messias Gonçalves Teixeira, depois Colégio Batista. Os dois arrumaram um jogo de camisas que o jornal Gazeta Esportiva estava distribuindo. Um jogo foi para Campinas e outro para o distrito de Sousas. Ficou então Gazeta de Campinas e Gazeta de Sousas. A Ponte Preta cedeu calção, meia, e os dois montaram o time. Um time de meninos, até que Pery Chaib assumiu.

Péssimo jogador, excelente treinador

      Zaiman jogava muito mal, apesar de ter sido “um dos primeiros pontas que buscavam jogo”. Mas ficou anos no Gazeta, junto com José Perez Pombal, Pery Chaib, o Tufi e um quarto-zagueiro não muito bom de bola mas técnico excepcional, Otacílio Pires de Camargo, o Cilinho do mágico time dos meninos do São Paulo na década de 1980.

Time corta-traves

      O Gazeta era um time de raposas. Não gostava de perder nada. Dia de decisão em Sousas, meio time com gripe, não houve dúvidas. Pela madrugada, agentes anônimos do Gazeta cumpriram com êxito a missão: serrar as traves do campo do time adversário. Jogo adiado, time restabelecido, o Gazeta se tornou campeão.

O dia em que Cilinho conciliou

        Mais que time, o Gazeta era uma irmandade. Do Hélio Ortiz, do Rob da Farmácia, da patota do Largo do Rosário, do Bar Turfe. O Cilinho começou a carreira de treinador no Gazeta. O Pery Chaib era presidente, e o Zé do Pito, vice. Um dia Ciclinho pôs Zé do Pito no banco. Isso porque o Zé do Pito, antes de começar o jogo, estava ajudando o Sérgio Salvucci, que ia narrar o jogo para uma emissora de rádio. Ou seja, na visão de Cilinho, Zé do Pito não estaria devidamente concentrado para a partida.
     O Zé do Pito não titubeou. Na segunda-feira, pediu para o Pery Chaib se afastar, e assumiu a presidência. E convocou o Cilinho, com a ordem: ou você me põe para jogar, ou está demitido. O Cilinho teve de conciliar, o que não faria na Ponte Preta, Guarani, São Paulo, Portuguesa, Corinthians ou América de Rio Preto, times que dirigiu, sempre com brilhantismo, assim como havia feito no Gazeta.

Campos para todo lado

      Décadas de 1950 e 1960, sete ou oito campos de futebol de várzea ficavam lotados, a cada manhã de domingo ou nos feriados. No campo do Cruzeiro, atrás da Igreja de Santo Antonio, na avenida da Saudade, tinha lista de espera. Às 7 horas um time se inscrevia para poder jogar durante o dia. Os jogos eram seguidos, sem intervalo, para todo mundo participar.
      O campo do Leônidas, no Botafogo, campinhos no Bela Vista, Taquaral, do Ipiranga atrás do São Jorge. O campo do Colégio Diocesano, onde o próprio Zaiman batia uma bolinha. O campo do Cesário, onde Paulo Leão comneçou, antes de jogar  no Guarani, Palmeiras, América do Rio, Botafogo de Ribeirão Preto, Ponte Preta e Francana. O Paulo Leão que fez cinco gols em 16 minutos pelo Guarani, garantindo uma virada contra o Taubaté.

Futebol no colégio

       As décadas de 1950 e 1960 também foram os anos de grandes times de futebol de colégios, que disputavam agitados torneios. Em Campinas, o Colégio Diocesano, o Liceu Salesiano e o Ateneu foram alguns que tinham times importantes, que sempre disputavam títulos.

Craques para todo canto

      A Vila Industrial, primeiro bairro operário de Campinas, é um celeiro de craques, que apareciam por todo canto, nos vários campinhos. Foi o berço de Antonio Francisco, o Nininho (1920-1997), centroavante mágico, da Ponte Preta, da Portuguesa de Desportos e da Seleção Brasileira. Mas nasceu no Campinas Futebol Clube, da Vila Industrial, antes de jogar com Julinho Botelho, Renato, Pinga e Simão, naquele que para muitos é o melhor ataque da Lusa da história. Na Seleção, foi tri-campeão sulamericano em 1949, quando atuou no impressionante jogo a 10 de abril no Pacaembu com a Bolívia, vencido pelo Brasil por 10 a 1, com três gols do campineiro. Depois de jogar na Ponte, fez alguns jogos, no final de carreira, pelo Catanduva Esporte Clube, onde também era conhecido como “Jacaré”.
        Outro jogo histórico foi a vitória de 3 a 0 da Ponte, em pleno derby” de inauguração do Estádio Brinco de Ouro, do Guarani, a 7 de junho de 1953. Nininho marcou um dos gols, ao lado de Pitico e Noca. Ciasca, da Ponte, pegou dois pênaltis. Nininho abriu uma bicicletaria na rua Salles de Oliveira e ria muito. Feliz da vida na Vila.
Mais craques da Vila
      Um nome da Vila que jogou futebol é Dorival Geraldo dos Santos, o garoto de ouro do Guarani de 1950.
     Outro craque da Vila Industrial é o Silas, que jogou no Ipiranga, Fluminense, Comercial de Ribeirão Preto, além da Ponte Preta. Ponta direita daqueles, de ir à linha de fundo e cruzar com precisão. Depois de deixar o futebol, foi sapateiro por muitos anos, atrás do Palácio da Justiça.
     O centro-médio Antenor Lucas, o Brandãozinho (1925-2000), é outro craque ilustre da Vila Industrial. Jogou na Portuguesa Santista até 1948, mas foi na outra Lusa, a do Canindé, que se destacou e chegou à Seleção Brasileira. 
      Na Portuguesa de Desportos, a chegada de Brandãozinho levou a uma das mais importantes mudanças de posição na história do futebol brasileiro, pois, com a sua transferência, ninguém menos que Djalma Santos foi deslocado para a lateral-direita, onde se tornou  um dos maiores, senão o maior, do mundo. A Lusa era impossível naquela época. Faturou os Torneios Rio-São Palo de 1952 e 1955 e cedeu sete jogadores para a Seleção. Brandãozinho jogou na Copa do Mundo de 1954, na Suíça, com Castilho, Djalma Santos, Nilton Santos e Julinho, entre outros. Trabalhou no DETRAN e foi investigador de polícia.
Canto do Túnel
     O radialista Sérgio José Salvucci todos dias atravessava o túnel da Vila Industrial (lugar “mal assombrado”, o túnel, segundo alguns poucos), um lugar romântico, de jogos de várzea nos campos do Leônidas, do Cruzeiro, Ipiranga e Canto do Túnel. Era uma homenagem ao túnel que liga a Vila ao Centro, os vilenses ao mundo. Salvucci dizia: “Torço para a Ponte Preta e Canto do Tùnel”. Mais uma marca registrada da Vila Industrial, a várzea das águas, do pó e das chuteiras.
O futebol no cinema brasileiro: roteiro ainda sendo escrito

Por José Pedro S.Martins

       A presença do futebol é historicamente reservada no cinema brasileiro, ao contrário, por exemplo, do caso do Estados Unidos ou países europeus, onde esportes populares têm servido de pretexto para bons filmes. Apenas depois da Copa de 1994 as câmeras do cinema brasileiro passaram a mirar com maior ênfase e riqueza de detalhes o esporte que mais eleva a autoestima do país.
        Não é possível falar de cinema e futebol no Brasil sem citar, claro, os clássicos jogos do Canal 100, que exibia resumos de partidas memoráveis, antes dos filmes principais nas décadas de 1960 a 1980, principalmente. O ritmo em slow motion, a edição perfeita, a narração cativante – tudo isso fez do Canal 100 um dos mais importantes instrumentos para firmar a paixão do brasileiro pelo futebol durante muito tempo, viabilizando uma ligação direta com o espírito do cinema.
      A espetacularização do futebol, o esporte ratificado como legítima arte – pelo menos, até quando o Canal 100 durou. Fundado por Carlos Niemeyer em 1957, o Canal 100 – que também abordava outros temas de relevância para a sociedade brasileira – como ficou conhecido, na esfera do futebol, deixou de existir na segunda metade da década de 1980, coincidentemente no início do período em que muitos classificam como o da decadência do futebol-arte. Entre 1959 e 1986, foi produzido um cinejornal por semana. Na década de 1990, o Canal 100 chegou à TV, com programas na Manchete. (Para os saudosistas ou quem quiser conhecer, fundamental conhecer o site: www.canal100.com.br)  
       Honrosas, ainda, são as exceções no hiato histórico entre cinema e futebol brasileiro. Um filme pioneiro foi “O Preço da Vitória”, de Oswaldo Sampaio, de 1959, sobre a conquista inédita no ano anterior na Copa da Suécia. “Garrincha, Alegria do Povo”, de 1963, de Joaquim Pedro de Andrade, foi provavelmente o primeiro documentário produzido no Brasil sobre a vida de um atleta, fato que confirma a força do mito Garrincha no imaginário nacional. Filme idealizado por Luis Carlos Barreto, o seu produtor e roteirista, em parceria com Armando Nogueira, Mário Carneiro e David E. Neves, além do próprio diretor. Um timaço, portanto. No mesmo ano, Carlos Hugo Christensen dirigiu “O Rei Pelé”, com argumento de Nelson Rodrigues (também autor dos diálogos) e Fábio Cardoso e roteiro do próprio diretor. 
     Obra importantíssima é “Subterrâneos do futebol”, de Maurice Capovilla, de 1965. Uma crítica, já naquela época, de toda a engrenagem montada a partir da paixão do público pelo futebol, e que coloca os jogadores como semi-deuses. Um curta de 30 minutos, produzido por Thomaz Farkas, como parte do projeto Brasil Verdade, do grupo que incluía Eduardo Escorel e Manuel Horácio Gimenez. Uma viagem à alma do Brasil, em plena ditadura militar. “Subterrâneos” contém imagens como a de crianças brincando em um campo de várzea, e a afirmação: “Nasce aí uma vocação. Nos bairros pobres de São Paulo, os meninos sem dinheiro e sem escola adquirem o gosto pelo futebol”. Uma radiografia nua e crua do que é o futebol longe e perto da fama. Prazer ou alienação? Liberdade ou ilusão? Algumas perguntas que o filme suscita.     
     Em 1981, “Asa Branca, Um Sonho Brasileiro”, de Djalma Limongi Batista, retrata com dignidade e de forma veemente os sonhos e decepções que rondam o mundo do futebol, novamente com a participação especial de Garrincha, pouco antes de sua morte, que talvez tenha simbolizado o óbito da pureza e ingenuidade que restavam na fantasia cultivada pela ditadura militar.
      Os acordos com o FMI no início da década de 1980 foram a pá de cal no autoritarismo. Em 1984 a campanha das diretas-já foi a válvula de escape de décadas de desejos reprimidos no seio da sociedade brasileira. Mas o sonho de novo durou pouco, como se sabe.
     Após a Copa de 1994 a safra de filmes brasileiros com o futebol como tema aumentou, embora a chamada Sétima Arte ainda tenha uma dívida com o esporte número um. Entre outros foram lançados “Boleiros” 1 e 2, de Ugo Giorgetti (de 1998 e 2006), “Garrincha, Estrela Solitária”, de Milton Alencar  (de 2004) e “O casamento de Romeu e Julieta”, de Bruno Barreto (de 2005).
     Uma produção importante tem sido observada na área de documentários. “Pelé Eterno”, de Aníbal Massaiani Neto (2004), envolveu um impressionante trabalho de pesquisa. Importante janela foi aberta com o Festival de Cinema de Futebol, o CINEfoot, inaugurado em 2010 e que representa o primeiro festival brasileiro e latino-americano totalmente dedicado  filmes sobre o esporte-rei. Curtas e longas dissecando várias facetas do mundo do futebol. Um perfil mais completo em construção. No cinema, o roteiro do futebol brasileiro ainda está sendo escrito. (Com informações de “O Tetra no País do Surreal”, livro de José Pedro Martins e Maria do Rosário Lino, Prefácio de Sócrates, 4F Comunicação, Campinas, 1994).

Artes plásticas refletem diversidade cultural brasileira, também no futebol
    
Por José Pedro S.Martins

        1935 foi um ano emblemático para a cultura e a política no Brasil. Foi o ano da Intentona Comunista, movimento contra o governo autoritário de Getúlio Vargas e que carregava a bandeira de uma ideologia logo rotulada pelas elites de alienígena, estranha ao modo de ser brasileiro. Mas também foi o ano em que o comunista Cândido Portinari (1903-1962), em clara evolução, resgatando, com uma boa porção de melancolia, sua infância em Brodowski, pinta alguns quadros que se destacariam como um capítulo à parte de sua grande obra, em razão da dramaticidade existente entre o potencial de movimento das cenas enfocadas, e a forma estática como elas aparecem nas telas.
       É o caso de Futebol, quadro considerado por Oswald de Andrade como um dos pontos altos da carreira de Portinari. E Futebol com certeza é um ícone, uma perfeita tradução do encontro maravilhoso entre os pincéis e o esporte que cativou o país. As artes plásticas são um dos terrenos culturais nos quais o futebol tem sido melhor espelhado, sem reservas, talvez pela própria configuração estética do esporte nacional. Em 1933 Portinari havia produzido a primeira versão do quadro, com o título “Jogo de Futebol em Brodowski”.
      Futebol resume a magia do esporte e explica porque ele seduziu corações e mentes através dos tempos. Crianças brancas e negras brincando, sem pressa, sem medo, em um campo de barro, com cavalos e vacas ao lado. A própria síntese do que é a vida, que tem no mesmo quadro o seu contraponto, a morte representada pelo cemitério ao fundo, bem longe. A vida em primeiro plano, o jogo, o lúdico. Claro, a cruz, dominando a cena, o Cristianismo presente com muita força na formação cultural do país.  Uma obra-prima entre tantas de Portinari, com 97 centímetros de altura e um metro e 30 de largura.
       A união do simbólico e do pictórico prossegue e, em 1968, no auge do período que qualifica de “utopia absoluta, utopia política, ética, estética”, Rubens Gerchman (1942-2008) produz Os Super Homens, pouco antes do exílio novaiorquino. “O resto é história das mortes lentas dos amigos queridos e muitos desconhecidos”, diz Gerchman (citado em “Cultura e participação nos anos 60”, de Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos A. Gonçalves, Editora Brasiliense, 1982). Gerchman é provavelmente o artista brasileiro que mais pintou o futebol. Mas ele era exigente. Só escalava craques, representantes do futebol-arte, em suas telas. Mágicos brasileiros como Garrincha, Rivaldo, Roberto Carlos e Zico, estrangeiros como Maradona, Platini, Bobby Charlton e Beckenbauer e, evidente, o extra-terrestre Pelé. Uma paixão, uma identificação com a alma nacional, pincéis driblando a tristeza e a retranca na obra de Gerchman.    
      Orlando Teruz (1902-1984) também produziu várias telas sobre futebol, colocando, lado a lado, duas das mais legítimas expressões da realidade brasileira: a dureza da vida nos morros, nos subúrbios, e a utopia, o primado do lúdico, proporcionado pelo futebol. Com Fim de Craque, de 1975, Siron Franco, sempre instigante, usa sua arte fantástica para denunciar a decadência, também no futebol.
       O mitológico não poderia faltar, e o anjo das pernas tortas é novamente o tema central, em O Sonho de Garrincha, de Newton Rezende. O craque voando, como o povo voava quando ele estava jogando. Pouco antes da Copa dos EUA, em 1994, o futebol voltava às telas, desta vez em duas obras de Egas Francisco: a tela Vida Veloz e o desenho Garra e Harmonia. Nos dois casos, o pintor ressalta o aspecto coreográfico – o ballet dos gramados – do futebol. O esporte que sai dos gramados e invade o reino das tintas, das telas e da imaginação incendiada. A liberdade que joga futebol no gramado da pintura. (Com informações de “O Tetra no País do Surreal”, livro de José Pedro Martins e Maria do Rosário Lino, Prefácio de Sócrates, 4F Comunicação, Campinas, 1994).