terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Lei Rouanet pode sair de campo e ser substituída por Procultura: o que o Brasil vai ganhar?

Mascarados de Poconé-MT, um dos ícones

da bela e rica diversidade cultural brasileira




A Lei Rouanet, como ficou conhecida a Lei Federal de Incentivo à Cultura, soma 20 anos nesta sexta-feira, dia 23, com um saldo de R$ 9,1 bilhões em captação para promover diversas modalidades culturais. Talvez não chegue aos 21, porque um novo mecanismo de fomento à cultura, o Procultura, deve ser aprovado no início de 2012 pelo Congresso. O projeto de lei do governo neste sentido, o 6722/10, já foi aprovado na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados.

A substituição da Lei Rouanet, para que outro mecanismo de fomento entre em campo, vem sendo amplamente discutida no setor cultural já há algum tempo. Há gente a favor e há gente contra. Há motivação ideológica, isenta ou puramente mercadológica nas observações, mas ainda falta uma reflexão mais profunda, no sentido da inserção de mecanismos de fomento ou financiamento em um multisetorial projeto cultural para o país, em conformidade com o atual cenário e as perspectivas da conjuntura global.

O mecenato não é novidade na história da cultura, muito pelo contrário. A grande revolução cultural que o Renascimento representou foi em grande parte financiada por mecenas, basicamente da classe mercantil em ascenção.

No século 20 o debate ficou mais ideológico. A doutrina neoliberal tende a deixar o Estado fora do patrocinío cultural, entendendo que poderia haver um eventual dirigismo e privilégios por parte de quem controla os aparelhos estatais. Claro que essa posição deriva em grande parte da crítica feita ao realismo socialista que vicejou durante as décadas de existência da União Soviética.

Por outro lado, e já entrando na realidade brasileira, setores populares entendem que, sem um apoio estatal, deixar a cultura para as leis do mercado seria consolidar, aí sim, os privilégios já existentes. A questão seria como o incentivo cultural poderia existir, mas de forma democrática, descentralizada.

Os defensores do Procultura entendem que esse é o caso. Dos R$ 9,1 bilhões captados através da Lei Rouanet em duas décadas, nada menos que R$ 7,2 bilhões foram destinados a projetos no Sudeste, o que em tese seria explicável, considerando ser a região economicamente mais rica do país. Mas é justo? Somente os estados de São Paulo e Rio de Janeiro ficaram com quase 70% dos recursos. Somados, os estados do Mato Grosso, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Alagoas, Amapá, Acre, Roraima e Tocantins ficaram com menos de 0,4% (migalhas?) do bolo da isenção fiscal representada pela Lei Rouanet nestes 20 anos.

Além disso, há a questão de quem se beneficiou dos patrocínios. Os críticos dizem que grande parte dos recursos foi para projetos de grandes nomes da cultura, notadamente da música, segmento mais beneficiado com a Lei Rouanet (R$ 1,8 bilhão entre 1993 e 2011).

Com o Procultura será diferente, argumentam seus arautos. Contra a crítica de que, pela legislação atual, as empresas é que definem quem patrocinam (e com isso podem obter maior retorno de marketing), a nova lei deve prever que 20% do que for captado irá para o Fundo Nacional de Cultura. Por este Fundo, a decisão sobre onde e quanto aplicar ficará para o seu gestor, o governo em última instância. Outra proposta é que todos estados fiquem com ao menos 2% dos recursos - os estados citados ficariam, então, com ao menos 18% dos recursos, e não com os famigerados 0,4%.

Para o governo federal, a nova lei, estabelecendo o Procultura, seria fundamental para mudar a realidade indicada por números como estes, identificados pelo IBGE: 92% dos municípios brasileiros sem cinema, teatro ou museu; 93% dos brasileiros sem nunca ter ido a um museu ou exposição de arte, e 78% ainda desconhecerem o que é um espetáculo de dança.

Mas será mesmo que o fomento à cultura deve se limitar a esse tipo de mecanismo? A experiência de outros países e regiões diz que não. Na Europa, o incentivo à cultura é tratado em outra dimensão. A cultura como ingrediente forte inclusive da economia, além de sua importância em si, de reveladora da identidade de um povo, de espelho de sonhos e anseios coletivos. A cultura responde por 4,5% do PIB europeu e por 3,8% da mão-de-obra daquele continente (em torno de 8,5 milhões de pessoas).

O emblema de como a questão é séria por lá está no Programa Europa Criativa, que acaba de ser aprovado pela União Europeia e que vai valer para o período 2014-2020. Isto, claro, se a crise econômica por lá não for ainda mais grave.

O novo programa prevê o incremento a vários setores artísticos e culturais, com destaque para o cinema, com 900 milhões de euros. Um dos resultados esperados da Estratégia Europa 2020 é que 300 mil artistas e profissionais da cultura sejam beneficiados com projetos para que tenham seus trabalhos conhecidos e reconhecidos além das fronteiras de seus países de origem.

Há muito a Europa faz isso, há muito países europeus de forma isolada fazem isso. O apoio ao cinema local foi fundamental para que vários filmes espanhois tivessem sucesso mundial, o mesmo ocorrendo com filmes franceses e de outros países, fazendo frente e resistindo aos enlatados norteamericanos. Com isso os valores europeus continuam sendo referência, mesmo com a crise econômica que se arrasta. O Programa Europa Criativa estipula que, com o apoio recebido, até 2020 um conjunto de 2.500 cinemas poderá exibir pelo menos 50% de filmes europeus em sua programação. Além disso, 5500 obras literárias deverão ser traduzidas em várias línguas.

País que aspira a uma posição de destaque na comunidade internacional, em um cenário de globalização acelerada, o Brasil deve pensar grande em termos culturais. O seu patrimônio cultural é riquíssimo, pela miscigenação histórica do brasileiro. A contribuição brasileira para uma nova civilização pode ser muito maior, mas para isso a cultura precisa deixar de ser pensada como assunto marginal, com fatias reduzidas dos orçamentos públicos.

Não seria o caso de, além de aprimoramento de incentivos fiscais para a cultura, se pensar em uma emenda prevendo um mínimo de investimento dos orçamentos públicos no setor, como existe na saúde e educação? A cultura é um dos bens mais preciosos de um país, a sua valorização é essencial para o desenvolvimento humano integral, em importância equivalente às necessárias condições ideais de saúde e educação. Então, se vier o Procultura, e se ele representar avanço em relação à Lei Rouanet, que seja um passo para um projeto cultural à altura da riqueza da cultura brasileira. (Por José Pedro Martins)

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