domingo, 4 de dezembro de 2011

O Doutor Sócrates Brasileiro que conheci, um pensador da cultura


A caricatura dele, na visão do Félix, que também

assinou outras ilustrações do livro




O prefácio assinado pelo Doutor, no qual ele destaca

a importância do futebol para a cidadania




"O tetra no país do surreal", lançado

logo após a Copa de 1994





Por José Pedro Martins



O cara era, é, sempre será, realmente diferente. O Doutor Sócrates morreu na véspera da última rodada de um empolgante, embora com qualidade mais do que discutível, campeonato brasileiro. E justo quando o Corinthians provavelmente se tornará de novo campeão. O jogo com o Palmeiras, que já estava apimentado, ganhou mais um condimento.


Ele nasceu para brilhar, porque sempre foi na corrente contrária. Não foi mestre em jogar de calcanhar, enquanto para muitos boleiros de hoje chutar para frente já é difícil? Como Tostão, outro doutor, não foi sempre uma referência no sentido de que o futebol não é tudo, mas a educação é tudo?


O nome de batismo já indicava tudo. Sócrates, aquele que sabe que nada sabe e por isso foi um dos maiores sábios. Outro que provocou polêmicas em seu tempo. E, além disso, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, nome enorme, de nobre, que aprendi de cor muito cedo, depois daquele domingo inesquecível em 1974.


Era a primeira vez que veria ao vivo e a cores, em branco e verde, o Palmeiras. Jogo no Estádio Santa Cruz, em Ribeirão Preto. Lotado, para ver aqueles craques que haviam conquistado o bi do Brasileirão em 1972 e 73, liderados pelos magos Dudu e Ademir da Guia. Mas quem brihou durante a maior parte do tempo foi um menino alto, magro, do Botafogo, que logo meteu dois no Leão.

Jogo dificílimo, que o Palmeiras apenas ganhou nos últimos minutos, em uma daquelas famosas arrancadas do Luis Pereira, que também fez dois gols. Virada por 3 a 2. Daqueles dias que a gente não esquece nunca. Logo procurei decorar o nome daquele moleque sensacional, então com 20 anos, que quase estragou a minha festa de estreia nos campos de futebol. A vitória sobre o Fogão foi decisiva para a arrancada que levaria o Verdão a ganhar mais um Paulistão.

Duas décadas depois, o reencontro. Em parceria com a Maria do Rosário, escrevi rapidinho um livro sobre a Copa de 1994. Achava que tinha de dizer alguma coisa, sobre o futebol tecnificado que nos levou ao tetra, naquele importante momento histórico do país, o do Plano Real. Futebol e política (talvez seja melhor dizer futebol e poder) bem juntos, como sempre.

Não pensamos muito em quem convidaríamos para escrever o prefácio. Só podia ser o Doutor, que sempre representou a antítese do futebol cooptado pelas estruturas de poder. Ele que foi um dos idealizadores da Democracia Corintiana e que, ao deixar os campos, prosseguiu sua cruzada pela democracia plena, social, igualitária. Afinal, é Sócrates Brasileiro.

Entrei em contato com ele e o Doutor prontamente aceitou o convite. Achou importante um livro que, como lhe relatei, procuraria mostrar a relevância do futebol na cultura, na política, na história do Brasil. "Existe pouca coisa assim", afirmou. E pediu um tempo para escrever.

Eu não acreditava ainda que ele mandaria o texto. Mas mandou, em seu estilo inconfundível, claro, elegante como sempre foi nos gramados. Leu claramente o sentido do livro, o de que, como o futebol burocrático, tecnocrata, demonstrado nos estádios dos Estados Unidos (com uma exceção brilhante, indicada abaixo), o Brasil poderia estar transitando para um momento provavelmente vitorioso em termos econômicos, mas com evidentes crises na cultura, em seus valores mais íntimos.

Marcamos então um lançamento do livro em um shopping em Ribeirão Preto. Queríamos a presença do doutor, na cidade que o projetou e onde vi aquele jogo que nunca sairá de minha pele. Eu havia morado naquela cidade tórrida, mas com o refresco de ter, vocês sabem, um dos melhores chopes do Brasil. E tinha parentes queridos lá, naquela oportunidade.

Sócrates confirmou que iria e de fato foi ao shopping, no dia e hora marcada. Esperamos, esperamos, vendemos um ou dois livros (lançamento às vezes é assim!), e nada do Doutor. Aí chegaram alguns amigos, que o viram no shopping.... bebendo cerveja. Não chegou a participar do lançamento, infelizmente, mas a nossa gratidão é eterna, por termos um dos poucos livros que ele prefaciou, que honra.

Ele sempre foi uma referência, nesses programas de futebol que na maioria das vezes dizem apenas mais do mesmo. Pouca coisa diferente, raríssimos olhares críticos em relação ao que o principal esporte do país virou, um grande mercado de negócios. O desgosto de Sócrates com os rumos do futebol sempre foi cristalino, ele não escondia nunca o seu sentimento.

Poucos dias antes de mais uma internação e de sua morte, ele repetiu as críticas. Para mim permanecerá o exemplo do jogador que tinha uma postura crítica enorme e que apenas não conseguiu a vitória sobre o álcool. Mistérios da condição humana.

O sinal de que seu legado é vibrante, de que as sementes que lançou frutificaram, eu senti quando conversei no final de 2010 com seu filho, Sócrates Júnior, graduando em Administração da FEA-USP. Ele foi o principal organizador da edição do ano passado do CaipirUSP, a competição universitária entre as unidades da Universidade de São Paulo (USP) no interior.

Joga tênis, futsal e futebol de campo, mas não tem carreira esportiva em mente. Pratica e defende o esporte pela sua importância na formação do cidadão. Esporte para o corpo e para a mente. Sócrates Júnior acredita que o esporte universitário ainda pode crescer muito no Brasil, apesar da histórica falta de apoio no setor. Geralmente são os jovens mesmo que, com garra e determinação, se empenham para organizar as competições.

O esporte como indutor de cidadania, como gerador de saúde, como motor de desenvolvimento.A mente aberta, as idéias em ebulição, o espírito comunitário de jovens como Sócrates Júnior e demais membros da Comissão Organizadora do CaipirUSP.

Para mim é o emblema mais sólido do legado de Sócrates, o sentido de cidadania que o seu filho me transmitiu. O esporte e, em particular, o futebol, pode, sim, ajudar muito para construir um novo Brasil. Descanse em paz, Doutor Sócrates, brasileiro de nome e de todo coração.

PS: Por ironia, ou não, do destino, agora que o Brasil se prepara para receber uma nova Copa, uma das estrelas desse momento prévio é o deputado Romário, aquele que se salvou do futebol burocrático de 1994 e foi fundamental para a conquista do Tetra.

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